sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Inevitável

Esses dias eu fiz quatro anos de morta. Quatro anos. Não que aqui eu conte o tempo mas quando olho para o passado é possível lembrar das horas, dos dias, dos longos meses.

Estão todos consolados. Isso é bom. Sempre soube que seria assim. Saudade não acaba nunca mas a roda viva, os problemas, a correria ao mesmo tempo que cansam fazem a gente deixar de lado muitas coisas importantes. Coisas boas (uma pena) mas coisas dolorosas também. Eu sempre citava para meus filhos aquele texto bíblico que diz que "...Quanto ao homem, os seus dias são como a erva, como a flor do campo assim floresce. Passando por ela o vento, logo se vai, e o seu lugar não será mais conhecido." Inevitável.

Os dias passam e aqueles que estão debaixo do tempo lembram de mim quando as luzes se apagam e vão dormir. Lembram de mim nos natais e aniversários, nas minhas cores prediletas, nas músicas que me comoviam, em gestos familiares que deixei programados em cada filho - as marcas de que passei pela Terra, inegavelmente.

De certa forma estou sempre com eles. Apesar da distância sei que vez por outra seii que por benevolência do Programador das Mentes Humanas, eles me sentem ao seu lado velando, sorrindo, cantando um hino que fala do Céu... e assim eles se sentem confortados. Com esse recurso ando pelos quartos, pelos gramados, folheio livros, relembro-lhes receitas caseiras e citações sábias. Observo-os enquanto dormem, relembro-lhes textos bíblicos quando estão em apuros e deixo-os imaginar que ainda hoje estou orando por eles. Faço de conta que sou anjo. A mente humana se envolve candidamente com esses arranjos. Inevitável.

Ah meus medos de antigamente! Como me preocupava em ser entendida, especialmente pela Cristina! Mas o tempo arranja tudo. Por algum motivo ela sempre achou que eu não a compreendia. Nossas linguagens frequentemente se chocavam. Havia inquietude, melancolia e uma certa rebeldia contidas naquela garota magrinha. Quando ela deixava a porta do coração entreaberta eu encontrava ali tantos sonhos, tantas irrealidades adolescentes, meu Deus! Tantas flores que não ficariam de pé sob os ventos da vida! Como dizer isso a ela? Nem precisava: ela entendia a ponto de se ressentir pelas minhas descrenças. Sabíamos uma o que a outra pensava e discutíamos sem palavras. Passou, inevitavelmente.

O que seria dela anos depois? O que seria dela se criasse asas antes de criar juízo?

Hoje estou tranquila. Em minha memória tudo agora é leve e fresco como minhas roupas, como esse rio de cristal sob meus pés, como as folhas da árvore da vida. Nada me causa dano e o vento não para de soprar. Cristina finalmente descobriu que eu era quem mais a compreendia na vida. Esse era o motivo de se irritar comigo: era inquietante que eu a enxergasse tanto e que tivesse razão com tanta frequência. Vamos nos encontrar e rir de tudo aquilo. Hoje ela se flagra com pensamentos iguais aos meus, medos semelhantes e até preconceitos coincidentes. E está ficando a minha cara.

Não aconteceu o que eu temia. Ela criou juizo antes de criar asas. Ela não sabia mas era inevitável se parecer tanto comigo.