quarta-feira, 18 de julho de 2007

No final, as letrinhas


Foi terrível aquela espera. Coisa difícil receber em casa a mala inchada, suja de barro. As roupas estavam arrumadas, dobradas e úmidas. A Bíblia estava lá, um pouco empenada. Conservei-a comigo até que, finalmente, também parti desse mundo.


Mas esse não foi o pior momento. Antes disso houve o reconhecimento dos corpos. Vi coisas feias, pessoas deformadas, inchadas... Muitas delas. Nojento, inesquecível, tétrico.


O corpo jamais foi encontrado.

Foi então um "fim-sem-fim". Sabe esses filmes franceses? Esses que a gente demora a entender que acabou? Pois é. Acabam de repente, sem mais nem menos e a gente leva um tempo para entender que não vai haver mais nada mesmo. Enquanto não aparecem os créditos, as letrinhas burocráticas, a gente não se convence.


Tudo acaba em letras, burocracia, documentos. É na hora da formalidade que passamos a imaginar como será daquele momento em diante.


Foi assim comigo.

terça-feira, 17 de julho de 2007

Primeira Parte

Nem importa mencionar em qual ano nasci.

É estranho olhar minha própria história como sendo toda localizada no passado - nada no presente.

Minha história acabou. Nem sei se fui boa ou má, feliz ou infeliz, bela ou feia. Existi e amei. Deixei amigos, sonhos realizados e irrealizados. Contagiei pessoas com meus sonhos mais bonitos. Não sei com certeza se consegui mudar alguma coisa no mundo. Talvez sim.

Meu pai me amava e eu amava meu pai. Filha única em meio a tantos rapazes. Sentia-me só frequentemente. Minha mãe trabalhava muito, noite e dia. Era uma boa mãe, mas limitada. Estudo pouco, tristezas muitas. Mesmo amada era uma mulher só e poucas vezes compartilhava conosco as coisas de seu coração. Acho que me amava. Internou-me em colégio de freiras para que eu fosse mais fina e bem aceita em sociedade do que ela. Talvez não soubesse bem o que fazer comigo. As pessoas sempre acham mais fácil cuidar de meninos.

Naquele colégio havia hora para tudo. Naquele tempo aprendíamos a bordar, tocar, costurar... Eu tocava piano mas minha família, exceto meu pai, não valorizava muito isso. Durante anos contei a meus filhos como eram os recitais, como eu mesma fazia meu vestido especial para as apresentações, como eram bonitos aqueles momentos ainda que minha família não os valorizasse.

Conquistei muitas amizades durante a vida. Depois de moça fui a muitas festas. Eu adorava dançar, conversar, rir. Foram bons tempos, tempos românticos e ingênuos, pelo menos em minhas lembranças. Lembro-me das vezes que ainda moça eu confeccionava os vestidos de festa de minhas amigas mais pobres. Décadas depois, já envelhecida, lagrimei muitas vezes quando lembrava dessa época. Parecia não haver grandes problemas. Existiam dores e mágoas mas tudo me parecia tão mais leve do que a vida das décadas seguintes! Eu amava as orquestras, os vestidos trabalhados, os namoros na porta, chapéus, luvas, boca vermelha. Eu adorava também dançar.

Fui feliz em minha juventude, vaidosa, cercada de amigos. Acho que eu tinha um grande coração.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Últimos dias

Da última vez que te vi eras mais filha do que mãe. Estavas deitada, impotente e frágil. Rapidamente olhei teus pés e lembrei deles ainda vigorosos, mergulhados em espumas brancas quando lavavas nossa cozinha.

Acho que o objetivo de nenhuma vida pode ser descoberto. Menos ainda da tua. Esse é um segredo de Deus, guardado dentro da Arca, junto com o maná e a vara de Arão.

Não lembro de ter perguntado se eras feliz. Acho que não. Penso que poucas vezes a felicidade pousou sobre tua cabeça mas jamais admitirias isso.

Mas não seria assim com todos nós?

Mas mais do que tudo, decifrar o sentido de teus últimos dias tem sido o maior dos desafios.
Há meses que esse quebra-cabeça jaz sobre a mesa das minhas reflexões, empoeirado. Olho confusa, levanto e não me animo a mexer em nenhuma peça. Não adianta.

Teus últimos dias não precisavam ter acontecido. Poderias ter morrido sem eles.
Houve alguma purificação? Um arrependimento final? Uma verdade revelada?
Poderias ter vivido sem eles...

Viraste criança, floco de neve, coisa leve que se perde. Foste restos de ti mesma, um suspiro dolorido.

Depois de teus últimos dias passei a me preparar para meus dias últimos. Sempre acho que vou me transformar em você. Olho no espelho e, parece-me, a metamorfose já começou.

Tenho pensado demais no final de todas as coisas e no prosseguir indiferente da humanidade.

Uma pausa

Esse lugar é um achado!
São 15:20 e estou ouvindo um piano celestial.
As músicas tocadas são do tempo de minha mãe.
Lá fora é dia mas aqui dentro é noite. Noite entrada em horas...

Pessoas antigas olham-me a partir das janelas de suas fotografias.
A música tocando fala tudo sobre como foi enquanto estavam vivas.
A música é veemente e apaixonada.
Veementemente apaixonada.

Nas ondas dessas músicas vejo um glamour esplêndido acenando daquela época.
Tudo ilusão, certamente. Mas é quase irresistível acreditar.
Essas impressões tem a ver com projeções das saudades que minha mãe sentia - projeções das emoções dela sobre minha mente.

Talvez nada fosse melhor.
Talvez fosse, mas eles morreram sem saber disso.

Dá vontade de chorar. Estou emotiva hoje, aqui, agora.
Queria visitar esse mundo passado com um vestido azul, leve e com sapatos bordados. Então eu conheceria aquele que poderia ter sido o grande amor da minha vida. Hoje ele certamente está morto.

Vou beber a isso. E chorar.